LEITURAS DO GLOBO
Por Sylvia Debossan Moretzsohn
Exatamente na data marcada
para nova reunião entre os representantes dos professores federais em greve e o
secretário Sérgio Mendonça, do Ministério do Planejamento, O Globo volta
à carga e anuncia, em manchete de primeira página da edição de segunda-feira
(23/7): “PT pagou o dobro da inflação a servidores – Em nove anos de Lula e
Dilma, gasto com o funcionalismo subiu 120%”. E, na página 3, o título
principal: “Gasto com servidores nas alturas – Entre 2003 e 2011, com Lula e
Dilma no Planalto, quase todas as categorias tiveram aumentos reais”. Com
destaque para o quadro com gráficos supostamente explicativos, sob o título
“Conheça os números”.
Conhecer é importante, ainda
mais quando se trata de números, sempre apresentados como a verdade factual e
indiscutível, embora possam ser manipulados à vontade, como tentei esclarecer
no artigo “O
jornalismo cego às armadilhas do discurso oficial“, publicado neste Observatório.
A
falácia dos índices
Neste breve artigo, não
tenho condições de entrar nos detalhes que demonstrariam a situação dos
servidores ao longo das últimas décadas. Mas é imprescindível apontar a falácia
que o jornal pretende impor. Não só por essa tática tão comum quanto capciosa
de se falar em “reajuste médio” e “custo médio” do servidor público, pois há
gritantes distinções de remuneração conforme a categoria a que se pertence.
(Para ficarmos apenas no caso das universidades federais, os funcionários –
técnico-administrativos – não tiveram qualquer reajuste no ano passado nem têm
previsão de reajuste para agora.) Mas também porque, espertamente, o jornal
destaca os percentuais ocorridos “nos governos do PT”, e esquece da situação
existente nos anos FHC, de absoluto congelamento salarial e redução do quadro
de servidores.
Para quem souber (e tiver
tempo para) ler, esta redução fica evidente no segundo gráfico, sobre a
“evolução do quantitativo de servidores ativos da União por poder”, que
demonstra uma queda vertiginosa dos servidores do Executivo (entre 1995 e
2002), de 951.585 para 809.975, e depois a recomposição gradual desse efetivo
até os atuais (em 2011) 984.330. É mais ou menos lógico que essa recomposição
representasse mais despesa com pessoal.
O
“outro lado” escondido
A única contrapartida à
avalanche de dados que demonstrariam inequivocamente a grande vantagem de ser
funcionário público federal (mais ainda: funcionário do Executivo) está num
breve parágrafo na metade final da reportagem: o argumento do secretário-geral
da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Serviço Púbico Federal (Condsef),
Josemilton Maurício da Costa, ainda assim desqualificada pela estratégia
discursiva no uso da adversativa, a sugerir que esses barnabés são mesmo
insaciáveis: “[ele considera que] mesmo com os aumentos dados no governo Lula é
preciso nova correção”. Diz o sindicalista, porém:
“Foram 12 anos de
congelamento, não tivemos aumento nenhum no governo Fernando Henrique. Lula só
deu aumento no segundo mandato. E o importante é ver quanto o governo gasta de
receita corrente líquida com pessoa. Há dez anos, eram 52% da receita, agora
são 30%”.
O jornal sempre pode dizer
que ouviu “o outro lado”. Que ele apareça escondido no meio da reportagem, é
uma outra história.
Uma perspectiva
jornalisticamente esclarecedora deveria trabalhar com os números de forma a
mostrar como eles podem significar uma coisa e o seu contrário, dependendo do
enfoque e das variáveis adotadas. Seria o mínimo a se exigir, em respeito à
qualidade da informação oferecida ao público. Porém, não se pode considerar o
jornalismo fora do jogo de interesses de quem trabalha com a notícia. E O Globo, sistematicamente,
vem procurando desqualificar as reivindicações dos servidores. Neste caso, com
um notável requinte: consegue ao mesmo tempo defender e atacar o “governo do
PT”, que ao mesmo tempo teria razão em endurecer com os grevistas e seria o
responsável pela remuneração extraordinária dos seus funcionários.
Nada surpreende, para quem
conhece o alinhamento político-ideológico do jornal ao longo da história. Por
isso mesmo, entretanto, apontar a manipulação continua a ser uma tarefa
essencial da crítica.
***
[Sylvia Debossan Moretzsohn
é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora dePensando contra os fatos. Jornalismo e
cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora
Revan, 2007)]
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